“Tudo começou com uma enorme tempestade, que cobria os céus do oceano, como um manto azulado cheio de detalhes. Nada se via além de pedaços de escuridão e de medo. E o barco ondulava para lá e para cá, sem ter como repousar…”

Tudo isso se passava na mente da pequena menina, que ouvindo os trovões no céu, cobria sua cabeça com seu cobertor de desenhos infantis. Balançava seu pequeno corpo para lá e para cá, segura em seu quarto em terra firme… a imaginar a tempestade que só existia em sua linda cabecinha, fértil de imaginação, sonhos e histórias.

E assim foi por um tempo. Mas como toda criança é impaciente, em breve a menina cansou-se do medo… e animada com as possibilidades do seu mundo mágico, parou de balançar o corpo…

…e após muito balanço e muita chuva, o sol finalmente começou a sair, e o dia raiou: repleto de cores e sons de pássaros e de vida. E dentro do barco havia uma linda mulher, que repousava, recuperando-se da noite agitada.

Ela sentia o sol tocar sua pele e as águas da chuva evaporarem das vestes, e quando a última gota de água desapareceu, abriu seus olhos.”

A menina já estava mais calma, mais serena. De onde viera todo aquele medo? Já não lembrava mais. 

”E desperta, a mulher sentou-se em seu barco, e olhou para o lindo dia que raiava. Já não tinha frio, nem medo, nem vontade de fugir. O barco agora já não parecia pequeno como antes… era leve, porém firme. Aconchegante, porém espaçoso. Livre, porém protegido.

Percebeu que podia caminhar pelo barco, e ele tinha tudo que precisava. Sentou-se para comer seu café da manhã, e então descansou em seu convés. Permitiu que o sol iluminasse seu corpo de dia e descansou em seu refúgio de noite. Era feliz, sentia-se feliz, vivia feliz.”

E foi então que a menina, debaixo de seu cobertor ainda, percebeu que já não era mais tão menina. Crescera, e até os desenhos de sua manta já não eram mais os mesmos: eram agora estrelas brancas num cobertor azul, como no céu noturno do barco da mulher…

“E foi justamente no meio da noite, que a mulher acordou, de repente. Não chovia e nada acontecia de diferente, além de uma inquietação que pairava em seu peito. Nada acontecia… nada acontecia… nada acontecia…

Mas sentia-se feliz. Era uma felicidade só sua, ninguém podia tirar-lhe isso… Ninguém podia… ninguém iria… ninguém… não tinha ninguém mais lá…”

A menina abriu os olhos, e deixou a coberta de lado. Foi até o espelho, e olhou para si. Já não era mais uma menina, era agora uma quase-mulher. Mirou seus próprios olhos no espelho, e de dentro deles, encontrou o caminho de volta àquela noite insone.

“Saiu para o convés, e lá fitou a noite. Fechou os olhos, e fez um desejo. Sentiu então que começou a levitar, bem devagar, se afastando cada vez mais do barco, entrando na noite estrelada… 

Passou pela noite, subindo até o Universo. Lá onde as estrelas são mais brilhantes e o azul mais intenso. Subiu até sentir que havia um chão imaginário em seus pés, feito de poeira de estrelas. Abriu os olhos e caminhou pelo chão de estrelas… lentamente, até se deparar com si mesma. “

E do lado de cá, já não havia mais menina, nem quase-mulher… Era uma mulher crescida, adulta, plena e feliz, que mirava seu próprio reflexo no espelho. Mirou-se por um longo tempo. E então, viu que o espelho lhe mostrava tantos outros rostos, do passado, do presente e do futuro; rostos amigos e outros nem tanto; rostos felizes e tristes, a refletir o que precisava enxergar dentro de si. 

Entendeu enfim que sua alma não precisava do outro para sobreviver, mas sim para que pudesse olhar para si. E a cada reflexo encontrado, também ela crescia. A cada olhar trocado, também ela vivia. E assim tudo ficou tão mais simples. E ela seguiu a sua vida, permitindo que cada encontro a auxiliasse a lembrar de si. E lembrando aos outros, também, quem eles são.

Carta da Leitura de Tarot que originou o conto “A História Dentro da História (Eu Dentro de Mim)”. Contos de Tarot, por Mirela Fioresy. Tarot: Space of Variations, Por Vadim Zeeland, versão original em Russo. Tema da Leitura: Uma Mensagem para o Ano Seguinte (tirada em dezembro do ano anterior).

Contos de Tarot são leituras de Tarot personalizadas, que trazem respostas e reflexões para questões enviadas pelo consulente, na forma de um Conto exclusivo. Apesar de serem criados como uma mensagem especial para quem solicitou a leitura, são contos que trabalham com imagens e conceitos do inconsciente coletivo da humanidade, trazendo também reflexões para todos nós.